
Advogado Pedro Duarte Pinto, mestre em Direito Público pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro e sócio do escritório MPDP
Advogados.
O jovem advogado afirma que o STF não tem encontrado resistência aparente a
assumir os papéis de outras instituições. “O Congresso foi muito
leniente, quiçá negligente, em seu papel de freio e contrapeso à atuação
do Supremo”, diz ele. “Não se viola a democracia para proteger a
democracia.”
Pinto, cuja pesquisa de mestrado é centrada nas relações entre os três
Poderes, critica o comportamento do Legislativo no caso de Daniel
Silveira — condenado pelo STF e depois indultado por Jair Bolsonaro — e
diz que o Congresso aceitou violações que podem fundamentar ações
futuras contra outros parlamentares, “independente de serem radicais,
de esquerda ou de direita”.
O advogado também afirma que a estrutura da Presidência é pensada
para depender do Legislativo desde a Constituição de 1988, mudando só
o modo de lidar com os parlamentares — via mensalão, orçamento
secreto ou distribuição de cargos no primeiro escalão. Pinto também
considera que o novo Congresso, que toma posse nesta quarta (1o), não
está alinhado à direita, e sim nas mãos do bom e velho Centrão. Segundo
o especialista, os bolsonaristas poderão ter voz ativa na oposição, mas
mirando as eleições de 2026, voltados “especialmente para suas bases e
para a construção de um discurso de visibilidade política”. Leia a
entrevista abaixo.
O que mais mudou no nosso presidencialismo de coalizão desde a
Constituição de 1988?Essa expressão designa um fenômeno em que a
governabilidade do presidente está vinculada à sua capacidade de formar
uma maioria no Parlamento. A nossa Constituição já previu um desenho
institucional em que o presidente e o Parlamento estão em interação e
negociação constantes. A Presidência, portanto, necessita do Congresso
para governar. O presidente não pode, sozinho, ditar a legislação.
Também não aprova o Orçamento. Ele está limitado nessas funções. Ele
precisa do Congresso e, para tanto, é necessário o uso de seus poderes e
prerrogativas para a formação de apoio e de sua coalizão.
Como isso acontece?Um mecanismo clássico é a distribuição de cargos
ministeriais aos partidos aliados. Durante os governos FHC, Lula e parte
do governo Dilma Rousseff, houve respeito a uma proporcionalidade do
tamanho da bancada e formação de uma base aliada. Com a acomodação
do PT na Presidência, passou a haver uma quebra dessa proporção, com
o partido almejando maiores espaços para suas diversas correntes. Como
consequência, foi necessário recorrer a outros meios para garantir a
formação e manutenção da coalizão — por exemplo, o recurso ao
mensalão. E mais: historicamente o desrespeito a essa proporcionalidade
aumenta o descontentamento da base aliada e pode ser visto como causa,
ainda que remota, da própria remoção do presidente, como ocorreu no
impeachment de Dilma e de Fernando Collor.
Jair Bolsonaro distribuiu cargos respeitando essa proporcionalidade?
Especialmente em seus primeiros anos, em que houve a adoção da
formação dos ministérios por critérios supostamente técnicos,
diferentes do da proporcionalidade da base de apoio, o presidente passou
a enfrentar uma resistência maior no Congresso. Foi necessário então o
recurso a outros instrumentos, como as emendas parlamentares e o
orçamento secreto. Esses mecanismos, embora já existentes entre os
meios de diálogo com o Congresso, foram reformulados e adquiriram um
papel preponderante nas negociações com o Parlamento, em
substituição aos meios que eram até então utilizados. Mas, com esses
novos instrumentos, o governo não formou uma base perene, e suas
demandas mais importantes – e, por óbvio, de maior dificuldade de
aprovação – ao Parlamento deram-se por base temática. Reunia-se uma
maioria para aprovação daquele tema, daquela lei.
Isso deve mudar com o terceiro mandato de Lula?O começo deste
governo sugere que o presidente voltou a utilizar essa regra velada da
proporcionalidade da base de apoio, com resquícios de uma
supervalorização das correntes internas do próprio PT, com a
distribuição de espaços para seus partidários. Isso evidencia que nosso
sistema político-governamental foi desenhado desde 1988 para ter, sim,
o presidente dependente do Congresso. O que variou, e continuará
variando, foram os mecanismos e prerrogativas presidenciais que são
utilizados para esse diálogo entre os Poderes.
Como tem evoluído a relação entre a Presidência e os outros dois
Poderes?A Presidência, de um lado, permitiu que o Legislativo
avançasse, exercendo um controle mais ostensivo no Orçamento, assim
como permitiu-se que alguns membros do Congresso ganhassem um
destaque que não lhes era peculiar. De outro, também deixou que o
Judiciário, em especial o STF, ocupasse um espaço que foi negligenciado
pela Presidência. E, nessa expansão, o Congresso foi muito leniente,
quiçá negligente, em seu papel de freio e contrapeso à atuação do
Supremo. A Corte Suprema voltou-se à análise de matérias e temas que
seus próprios precedentes, já de uma era de ativismo, reservavam para a
esfera de atribuições dos outros Poderes. Alia-se a isso o acirramento da
polarização política dos últimos quatro anos, com a ascensão de um
grupo tão historicamente dissonante da Presidência que igualmente
trouxe para o Supremo discussões das esferas estritamente políticas.
Com a ocupação desses espaços e a expansão de seus próprios poderes, o
STF ampliou o seu ativismo já existente, antes reservado a pautas sociais
e contramajoritárias, como ocorre com outras cortes constitucionais, e
se atribuiu o papel de última palavra também para a política e para as
competências executivas e legislativas.
O Judiciário também avançou sobre o Legislativo?Limitações à
liberdade de expressão e liberdades parlamentares, até então fortemente
protegidas pelo próprio Supremo, passaram a se tornar cotidianas e a
decorrer de simples decisões monocráticas. Presenciaram-se ações
voltadas diretamente aos membros do Parlamento, violações de
prerrogativas de deputados, como no caso Daniel Silveira, e o Legislativo
permaneceu silente. Tudo com a justificativa casuística, “de pessoa”:
sob a pecha de se tratar de um “radical”, de um “inimigo” —na acepção
do Direito Penal do Inimigo—, aceitaram-se as violações ocorridas.
Houve, assim, a criação de precedentes que poderão fundamentar ações
futuras contra outros parlamentares, independente de serem radicais, de
esquerda ou de direita.
Teremos um Congresso de direita que poderá atrapalhar o governo de
Lula?Muito se alardeou, ao fim do primeiro turno, a formação de um
Congresso de direita: uma maioria de direita, que seria indicativa da
reeleição de Bolsonaro. É inegável que houve um aumento da
representatividade da direita. Alguns nomes de clara expressão
bolsonarista e de outras correntes chegaram ao Parlamento. No entanto,
não acredito ser possível falar em um Congresso de direita.As siglas
identificadas como de direita nessa contabilização de assentos são
partidos do famoso Centrão. O PL, embora tenha contado com Bolsonaro
como candidato, é um partido de centro. O PP, de Arthur Lira, é
inegavelmente de centro. Republicanos, idem. O União Brasil já estava
negociando espaços com o governo Lula e foi contemplado com três
ministérios. Lira fala inclusive na formação de um “bloco único” na
Câmara, contemplando tanto o PT como o PL.
Vai dar Centrão, então?Com esses indicativos, acredito que o governo
Lula repetirá o histórico de bom trânsito e boa negociação com o
Legislativo, inclusive diante do retorno a uma formação ministerial
(distribuição de cargos, em especial do primeiro escalão) com o objetivo
de formação de base. Além disso, os atos golpistas de 8 de janeiro
atribuíram um capital político ao governo Lula e uma unidade de
discurso entre os Poderes e em torno do presidente, prejudicando as
pautas de direita.
Haverá vozes dissonantes e de oposição dentro do Parlamento?Sim.
Nos governos FHC, o PT e outros congressistas usavam do palanque das
Casas para expressar sua discordância e serem ouvidos. Nos governos
Lula e Dilma, o PSDB de Aécio Neves e José Serra assumiu essa posição.
No governo Temer, PSOL, Rede e PT voltaram a esse papel de resistência.
E, no governo Bolsonaro, é possível ressaltar o papel de parlamentares
como o senador Renan Calheiros, que exerceu uma ostensiva oposição ao
então presidente. No atual governo Lula, estes papéis poderão (e
provavelmente serão) exercidos por parlamentares como os senadores
Hamilton Mourão, Sergio Moro, Damares Alves e pelo presidente do PL,
Valdemar Costa Neto. O Congresso, assim, continuará sendo do Centrão.
Os bolsonaristas e membros de direita poderão ter essa voz ativa de
oposição, mas entendo que seu alcance será restrito, voltado
especialmente para suas bases e para a construção de um discurso de
visibilidade política, mirando as próximas eleições.
Após os ataques de 8 de janeiro, o sr. teme pela manutenção do Estado
de Direito no Brasil?O Estado de Direito é uma construção de um
império de normas postas previamente para limitação de um poder
absoluto, antes representado pelo rei e, agora, por Estado e governos.
Essas regras manifestam-se através, dentre outras coisas, do processo
—ou seja, do procedimento, seja penal ou civil. É o respeito a estes risos
que legitima que o Estado venha a atuar sob os direitos e liberdades
individuais. A cobrança de um tributo, por exemplo, é legítima, desde
que ele seja criado e exigido mediante a observância dos procedimentos
legais e constitucionais previamente estabelecidos. Esse respeito
também é inerente à democracia. A legitimidade da atuação estatal
também vem do princípio democrático; o poder constituído também
deve observância às regras previamente estabelecidas. E esse respeito
não admite relativizações. Não é sustentável a justificativa de infração às
normas para prevenir infração às normas, especialmente quando em
ambos os polosse tem a democracia como bem jurídico protegido. Não se
viola a democracia para proteger a democracia.